Diablo sempre foi mais do que cliques frenéticos e chuva de loot: por trás das hordas demoníacas existe um universo de fantasia sombria com cronologia própria, panteão de anjos e demônios e um conjunto crescente de romances, contos e quadrinhos oficiais que tratam o mundo de Santuário como uma verdadeira série literária. Com Diablo IV e sua expansão Vessel of Hatred, essa vocação narrativa fica ainda mais evidente, abrindo espaço para uma leitura “literária” de um dos ARPGs mais populares do mundo.
Vessel of Hatred retoma a história logo após o fim da campanha principal, acompanhando o destino de Neyrelle depois que ela parte carregando a Soulstone que aprisiona Mephisto, um dos Prime Evils. A ação se desloca para Nahantu, uma região de selva dominada por corrupção e forças sombrias, onde o isolamento físico e emocional da protagonista se torna o eixo temático da narrativa. O enredo gira em torno da tentativa de salvar a alma de Neyrelle enquanto Mephisto tenta transformá‑la no verdadeiro “vaso do ódio”, ampliando a sensação de tragédia anunciada típica de grandes romances de horror.
Tematicamente, a expansão trabalha com motivos que são muito familiares à literatura de fantasia sombria e terror clássico: isolamento, corrupção moral, o peso da culpa e o sacrifício em nome de um bem maior. Neyrelle, cercada por vozes, visões e pela influência constante de Mephisto, lembra protagonistas que lutam contra a própria mente em narrativas de horror psicológico, enquanto o cenário de Nahantu funciona quase como um personagem, um espaço vivo que reage à presença do mal. Essa abordagem aproxima Diablo IV de sagas literárias que usam mundos fantásticos para discutir fé, fanatismo e redenção, sem abandonar a ação típica do gênero.

Paladino e Amazona: a volta dos arquétipos clássicos.
Com a Season 11 de Diablo IV, o retorno do Paladino coloca no centro da temporada um dos arquétipos mais clássicos da fantasia: o cavaleiro sagrado de armadura pesada, dividido entre fanatismo, fé e sacrifício, agora reimaginado pelos Wardens of Light em Lord of Hatred como uma ordem de antigos pecadores que buscam redenção ao enfrentar Mephisto. Nas mecânicas do jogo, essa tensão aparece em auras, votos (oaths) e habilidades que transformam o corpo do herói em extensão da própria Luz, ecoando narrativas de cruzadas, mártires e guerreiros devocionais tão presentes na literatura fantástica. Em paralelo, a comunidade especula que a segunda nova classe anunciada para a expansão — ainda sem nome oficial — possa resgatar o arquétipo da Amazona, aproximando Diablo das guerreiras da mitologia grega e de tantas heroínas arqueiras e lanceiras da ficção, figuras que encarnam o mito da mulher guerreira que desafia a ordem estabelecida e expande o imaginário de Santuário além do masculino cavaleiresco.

Fora do jogo, o universo Diablo já conta com uma bibliografia considerável: romances como “Legacy of Blood”, “The Black Road” e “Kingdom of Shadow”, além de coletâneas de contos e quadrinhos como “Tales of Sanctuary”, exploram diferentes períodos da cronologia, ordens religiosas, heróis trágicos e manifestações do mal em Santuário. Esse conjunto de obras amplia o que se vê na tela, detalhando culturas, conflitos e personagens que a campanha principal apenas sugere, e faz a franquia dialogar diretamente com leitores de fantasia épica, dark fantasy e horror sobrenatural. A chegada de novos quadrinhos como “Diablo: Dawn of Hatred”, situado após a expansão, reforça que a história de Diablo IV continua em formato seriado, como se fosse um grande ciclo de romances ilustrados.
Para um blog de literatura que dialoga com games, filmes, séries e animes, Vessel of Hatred é um ponto de encontro interessante: é um lançamento relevante do mundo dos jogos, mas que se apoia em construção de mundo, simbolismo religioso, tragédias pessoais e uma teia de textos derivados que podem ser lidos como uma série de livros de fantasia sombria. Ao tratar Diablo IV como uma “saga literária interativa” e mapear as conexões entre a expansão, os romances e os quadrinhos, o artigo consegue aproximar leitores que amam histórias de fantasia dos jogadores que vivem essas narrativas no teclado e no controle.